Alden Caulfield, um Mago e Obituarista

Alden Caulfield – Jornalista responsável pela redação de obituários do New York Times. Fascinado pela vida dos notáveis, descobriu no Despertar as mais profundas ramificações da existência.

Antes do Despertar:

Se ele estava irritado com a linha de questionamento de Hannah – a afirmação de que escrever longos obituários para o New York Times sob pressão de prazo poderia tê-lo levado à própria sepultura –, não demonstrou, não levantou a voz; mas ele raramente o fazia. Continua sendo um homem quieto, um homem previsível que toda manhã sai da cama e começa a fazer o seu desjejum e da esposa. Em seguida, ele fica sentado por cerca de uma hora em seu estúdio, fumando um cachimbo, tomando seu chá, examinando os jornais, erguendo as sobrancelhas levemente quando lê que um ditador está desaparecido, um estadista está doente.

No meio da manhã ele vai se vestir com um dos dois ou três ternos que possui e, olhando brevemente para um espelho, vai apertar sua gravata borboleta. Ele não é um homem bonito. Tem um rosto simples e redondo que é quase sempre sério, se não austero, e é encimado por uma cabeça cheia de cabelos castanhos. Atrás de seus óculos de aro de tartaruga há olhos azuis muito pequenos.

A mente de Alden Caulfield é uma coisa pegajosa cheia de todo tipo de informação inútil que Hannah costumava adorar: ele podia recitar a lista de papas para trás e para frente; sabia os nomes da amante de todos os reis e sua data de reinado; sabia que o Tratado de Westphalia foi assinado em 1648, que as Cataratas do Niágara têm 167 pés de altura.

Depois de deixar Mark na pré-escola, a morte toma a mente de Caulfield ao longo de todo o trajeto do metrô em direção a Times Square. No jornal da manhã ele leu sobre quem não está bem. Caulfied planeja, quando chegar ao Times em dez minutos, ir diretamente ao necrotério, a sala onde todos os recortes de jornal e obituários antecipados são arquivados, e examinar suas “condições”. Existem 2.000 obituários avançados no necrotério do Times, Caulfied sabe, mas muitos deles foram escritos há muito tempo e agora precisam ser atualizados. Para um escritor de obituários, não há nada pior do que ter uma figura mundial em sua mesa antes de seu obituário estar atualizado; pode ser uma experiência angustiante, Caulfied sabe, exigindo que o escritor se torne um historiador instantâneo, avaliando em poucas horas a vida do homem morto com lucidez, precisão e objetividade.

Parte do astigmatismo ocupacional que aflige muitos escritores de obituários é, depois de terem escrito ou lido um obituário antecipado sobre alguém, chegar a pensar que essa pessoa está morta com antecedência. Alden Caulfied descobriu, desde a mudança de seu trabalho de revisor para o atual, que em seu cérebro se embalsamaram várias pessoas que estão vivas, ou que finalmente foram vistas, mas a quem ele está constantemente se referindo no passado. Além disso, ele admite que, depois de ter escrito um excelente obituário, seu orgulho de autoria é tal que ele mal pode esperar que a pessoa caia morta para poder ver sua obra-prima impressa. 

Caulfied mantém em sua mesa uma espécie de lista dos vivos a quem ele está dando prioridade. Esses indivíduos são incluídos porque ele acha que seus dias estão contados, ou porque acredita que o trabalho de sua vida terminou e não vê razão para retardar a inevitável tarefa de escrever, ou porque ele simplesmente acha o indivíduo “interessante” e deseja escrever o obituário com antecedência. Para seu próprio prazer.

Quando Caulfied vai aos concertos no teatro, como faz tantas vezes, ele não consegue resistir a olhar ao redor do salão e observar os ilustres membros da plateia sobre quem ele pode estar particularmente curioso algum dia em breve. Caulfied faz anotações sabendo que algum dia elas ajudarão a dar vida ao seu trabalho, sabendo que obituários magistrais, como bons funerais, devem ser planejados com bastante antecedência. “A morte nunca surpreende um homem sábio”, escreveu La Fontaine, e Caulfied concorda e mantém seus “arquivos atualizados”, embora nunca permita que qualquer um leia seu próprio obituário.

Caulfied nunca viu seu obituário antecipado, mas imagina que começará algo assim:

“Alden Caulfied, um membro da equipe do New York Times que escreveu artigos de obituários sobre muitas das personalidades mais notáveis ​​do mundo, morreu repentinamente ontem à noite em sua casa, 600 West 116th Street, de um ataque cardíaco.”

Será muito factual e verificável, ele tem certeza, e registrará que nasceu em 27 de maio de 1950, na Nova Escócia, e foi trazido a Nova Iorque por seus pais dois anos depois; que ele foi casado, teve um filho (Mark), foi ativo no New York Newspaper Guild; listará seus locais de trabalho, mas não relatará que em 1977 quase se afogou enquanto nadava (uma experiência que achou muito agradável), nem que em 1980 ele chegou a um centímetro de ser esmagado por uma parte de um parapeito caindo; nem que em 1989 ele perdeu o controle de seu automóvel e deslizou impotente para a borda de uma montanha no Colorado, quando ele repetiu o que havia dito a maior parte de sua vida: não há Deus; Eu não temo a morte porque não há Deus; não haverá dia do julgamento.

Despertar:

Já há alguns meses Caulfield vinha sendo atendido por diferentes psiquiatras em sucessão. Chegou até eles por uma questão muito peculiar, mas que lançava dúvidas sobre a capacidade profissional que lhe era tão cara. Caulfield sempre se orgulhou de seu apuro e precaução, mas quem acompanhasse o progresso de seu trabalho veria que era no detalhe de última hora que o escritor conferia brilho aos seus mortos. Era como se pudesse escutar dos próprios desencarnados os detalhes que até então todos os biógrafos haviam deixado escapar. Muitas dessas histórias não podiam ser confirmadas. Outras contrariavam tudo o que se sabia a respeito do falecido. Em muitos casos, Caulfield sequer era capaz de lembrar a circunstância em que chegaram ao seu conhecimento. Se sua memória perdera a precisão, ou pior, se o seu juízo a respeito dos fatos fora comprometido, ele estaria acabado.

A busca necessária por respostas levou Caulfield ao mergulho profundo nas minúcias do trabalho, resultando na total absorção de sua atenção e agravando ainda mais o distanciamento que sua personalidade dada à contemplação impunha à esposa. Hannah sabia que não se casara com um galanteador de paixão candente, mas aos seus olhos Alden tornara-se frio, negligente. Abandonada, satisfez suas perdoáveis necessidades nos braços de um amante qualquer. Mas não seria isso ainda a desembocar no divórcio.

Numa noite no teatro uma apresentação vanguardista de Macbeth estabeleceu os eventos determinantes para tudo o que aconteceria depois na existência de Alden Caulfied. Era a segunda vez que acompanhava o espetáculo no antigo prédio plantado em uma rua qualquer. Retornou por mero interesse em ter com o diretor uma conversa a respeito de sua leitura da obra original. Surpreendeu-se, naquela oportunidade, com a violência apresentada no palco. Isso, contudo, em nada o preparou para o que via agora, um morticínio glorioso, com sangue em poças e cadáveres em pilhas. Ao final, encerramento macabro, apenas os atores cujos personagens sobreviveram perfilaram-se para aplausos tímidos.

Tudo o que se seguiu apenas retornou às memórias de Caulfield com muito custo e igual horror.

Viu-se, naquela noite, diante de uma criatura, pelas capacidades e apetites, que jamais soube definir se humana ou não. Exercia um fascínio anormal sobre os atores sobreviventes, a ponto de terem sido capazes de eles mesmos darem cabo de seus colegas em pleno palco, diante de duas dezenas de testemunhas incertas do que se passava ali. Caulfield também descobriu-se não de todo humano naquela noite, apto a girar a roda da fortuna, ter com os mortos e escutar o que não foi dito. Apenas graças à combinação dessas faculdades extraordinárias ele deixou com vida o local, não sem antes ter enviado o diretor da peça e responsável pelos crimes a um plano sombrio e inalcançável da existência.

As semanas seguintes foram de acusações infundadas em busca de uma verdade que jamais poderia ser compreendida. Hannah divorciou-se de Caulfield. Ele saíra de casa antes disso, como forma de preservar os dois da atenção indesejada da polícia, imprensa e curiosos. Não havia também como exercer seu ofício. Retirou-se para Montauk com o intuito de colocar a vida sob a perspectiva dos novos eventos. Foi lá que a Morte o visitou.

A Morte era jovem, alegre e cheia de entusiasmo. Uma menina sábia e uma mulher impetuosa convivendo sob a mesma palidez cadavérica. Disse-lhe que ele era agora um Mago, que tinha muito a aprender e que nada seria como antes. A Morte, que nunca lhe deixou os pensamentos, estaria sempre ao seu lado dali por diante.

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